quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Relatividades

Lembro-me perfeitamente da primeira vez que tive de lidar com a perda, tinha entre 6 a 8 anos, perda real, não aquela perda de criança que perde um brinquedo, a perda de alguém, alguém que vemos todos os dias e que nos afaga a cabeça, nos consola quando caímos e chama todos os nomes e promete uns açoites quando a bola faz muito barulho a bater na janela, foi a minha vizinha D. Cesaltina, senhora já velhota, de um dia para o outro desapareceu, lembro-me de não compreender o conceito, o porquê de não ouvir mais aquela voz, não ver mais aquela face nem sentir o cheiro que é característico das pessoas mais velhas, um cheiro a antigo mas sem ser mau, é quase que um cheiro a experiência de vida, foi a primeira pessoa que me fez pensar que afinal à perdas mais importantes que um saco de berlindes às três covinhas.
Quando tinha entre 10 a 13 anos tive a minha segunda lição de perda, desta vez foi mais duro, bem mais duro, era o meu "herói", verdade seja dita para um puto de 12 anos de Brancanes, um gajo de cabelo comprido com uma mota de moto-cross e um brinco na orelha facilmente se tornava herói, era o Pedro, namorado da minha irmã, um gajo cheio de pinta e que para minha alegria tinha paciência para ser amigo de um puto como eu, andamos de mota, íamos à praia e levou-me ao cinema para ver o "Encontro de irmãos", o Pedro não morreu de velhice como a D. Cesaltina, o Pedro morreu de acidente de moto, um conceito de morte que até aqui eu ainda não tinha conhecimento tão próximo, lembro-me de chegar a casa um ou dois dias depois de ele ter dado entrada no hospital, olhei para a cara da minha irmã mais velha... ninguém me disse nada, fui para o meu quarto e chorei como nunca tinha chorado, de uma maneira que achei que nunca ia parar, descobri nesse dia que as perdas são sempre relativas, podemos achar que o mundo acabou por perder algo ou alguém mas o universo encarrega-se de nos ensinar que afinal não era assim.
Depois vieste tu (sim, este texto tem um destinatário), tinha cerca de 15 anos, estava na sala de convívio e tínhamos um amigo em cumum, trocamos umas palavras no dialecto dos anos 90 e ficamos por aí, depois chegou o dia de um concerto na cidade velha em Faro, no saudoso "País das Maravilhas" , um concerto de "Peste&Sida" se não me engano, estava eu no "Mosh" quando com um slam mais agressivo cai, ia certamente ser espezinhado,  olhei para cima e vi-te ali, tinhas aquele sorriso e os óculos de intelectual com braços abertos a parar uma multidão em êxtase musical, deste-me a mão para me levantar, ficamos amigos para sempre, não amigos quaisquer, amigos daqueles que quando te perguntava: "és mê amigue?" a resposta era sempre "mê amigue?!?, nã pá, sou amigue entere".
Aos 18 anos a vida encarrega-se de me dar mais uma lição sobre perda, foste assassinado, não morreste de velhice nem de acidente, foste assassinado, um conceito para o qual não estava preparado,  alguém te arrancou a vida a ti e a ti da minha vida, lembro-me de pensar que devia gostar mais dos meus amigos do que da minha família, pois para mim era inconcebível que pudesse haver ainda dor maior e que se houvesse seria impossível alguém sobreviver, sobrevivi, não sem me ter tornado mais "frio" menos emotivo, mais racional.
Aos 37 anos soube da morte do animal que te assassinou, lembro-me de ter ficado feliz, um novo conceito, sentir alguma felicidade pela morte de alguém, ainda por cima o evento que levou ao maior sofrimento da minha vida foi o mesmo que me deu esta alegria, sofri por a tua morte e fiquei feliz com a dele...pela mesma razão, no fundo tudo é relativo.

Beijinhos e abraços, vou só ali relativizar as perdas de ontem e preparar-me para as de amanhã.

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